quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Geração dos Planos Desfeitos


    A pandemia da COVID-19 nos fez enxergar muitas coisas de forma diferente. Percebemos o quanto vivíamos confortáveis em detrimento de gerações anteriores que sempre tiveram dificuldades para além de seu controle e perspectiva, percebemos como muito do que temos, na verdade só faz parte do nosso jirau de ícones de nossa época, mas que pouco significam em termos de essência para sobrevivência. Percebemos o quanto somos frágeis diante de forças descomunais como a de uma colônia de vírus organizados. Percebemos o quanto a exploração do trabalho pode ser relativizada e não precisa se impor como uma verdade de todos os dias e horas (sim, durante os lockdowns, ao menos uma grande parte viveu e sobreviveu sem trabalho – não sem prescindir da renda pois ainda dependemos do dinheiro). Percebemos como a humanidade pode seguir sua mesquinhez mesmo diante de tal desafio e não se unir em torno do bem comum, entre tantos outros aprendizados (ou falta deles).
    Para quem pôde e teve um lar onde se refugiar durante a pandemia percebemos novos lugares e cantos da residência. Impusemos desgaste a esta estrutura que antes era dividido com o desgaste que impúnhamos aos locais de trabalho e estudo, durante as horas que estávamos lá. Impusemos superexploração de minérios e de supercondutores para alimentar nossa infraestrutura eletrônica, que foi levada à outra potência.
    Falamos de assuntos nunca antes aprofundados como índice de replicabilidade, taxa de transmissão, aprendemos sobre médias móveis, gráficos e curvas em um desenvolvimento sem precedentes do pensamento exponencial.
    Mudamos bastante a nossa forma de ser e estar. Estamos muito mais avatares do que na carne e osso. Conversamos com quadradinhos na tela, nos encontramos em plataformas digitais onde não precisamos ser o que somos mas podemos nos travestir de carros, bichos, monstros e muitas vezes, até de seres humanos.
    Nunca mais vimos os pés das pessoas. Não conhecemos mais o cheiro, a altura ou mesmo suas costas. Ficamos mais distantes, é verdade, mas ao mesmo tempo entramos no quarto dos colegas de trabalho, na sala, no banheiro e, às vezes, até nos aposentos de sogros e sogras. Sobramos intimidade para cabelos malfeitos, barbas desgrenhadas, camisetas de vereadores da década de 90 e para crianças correndo e gritando de um canto a outro da tela.
    Ficamos à espreita por uma brecha sanitária para encontrar os nossos, mesmo que soubéssemos que não saberíamos nos portar na situação tão aguardada.
    Esperamos e esperamos, por anos. Ficamos cansades, exaustes e extenuades.
  Talvez nosso maior aprendizado seja o da espera e da contemplação sem expectativas. Talvez o futuro não exista ou precisaremos pensar nele depois. Em meio à pandemia, os que ousaram pensar no após se frustraram muito. Mais coeses e centralizades ficou quem aprendeu a desfazer e a esperar. É possível que os de planos altos se movam melhor no depois, mas a real, é que quem soube abolir o depois, esteve mais serene.
    Aos que urge o tempo, ele se torna mais agressivo e machuca muito mais. Aos que ao tempo esperam, e dão espaço, ele é mais complacente neste ambiente pandêmico.
    Ninguém me preocupou mais do que adolescentes. As crianças estiveram com pais, mães e até avós e avôs mais do que nunca, mas a adolescência urge conquistas, urge investidas fora do casulo. Urge experiências de autonomia e burradas, bem como, requer cuidado e atenção psicológicas. Aos que foi possível por motivo de classe e outras condições, a adolescência foi jogada dentro de um quarto com cheiro ruim de hormônios. Relações virtuais são da geração delus, mas não precisava exagerar né?
    Seus encontros vitais foram cancelados por causa da avó comórbida que coabita. Os passeios e sua verve foram amordaçadas pela falta de ar do pai. Foi exigido, daquela forma etária mais autocentrada de gente, que tivessem responsabilidade coletiva E social E planetária. Suas bocas foram recolhidas às máscaras.
    Não sei o que será desta geração, não consigo imaginar como vão pular esta fase. Ou não vão?
    Sem egoísmos, sei que avós e avôs viveram em guerras mundiais, guerras locais e guerras totais. Viveram pandemia e, no entanto, estiveram ou estão por aí. Sua geração tem marcas, tem jeito, tem cultura e tem tempo. Não foram apagados porque tiveram que engolir a seco uma parte de sua vida.
    Mas esta geração abalroada pela pandemia da COVID-19 assusta sobremaneira pois estiveram distantes sem estar, estiveram e foram sem ser e estar. Viram o mundo pelo ambiente virtual mas nunca tocaram-se, sentiram-se.
  Tiveram que se desfazer de seu aprender e conquistar mesmo sem ter consolidado seu aprendizado e suas conquistas. Tiveram que se despir de planejar mesmo sem ter modulado seu aprendizado para a construção de um futuro pretendido.
    Depois da geração Y, Z, Alfa, Beta, Delta, teremos a Geração dos Planos Desfeitos. Uma geração que aprendeu muito cedo a perder, a desfazer e a desmontar, mesmo sem ter aprendido ainda a montar e a planejar. Pode ser que se tornem seres humanos mais conscientes. Pode ser que seja exatamente a geração que, por conta de sua experiência, aprenda que crescimento e consumo sem freio só servem para nos destruir a todes. No entanto, o que me preocupa no momento é algo bem mais prosaico. Estou dedicado a sofrer com as férias que não puderam tirar, com a educação que não puderam ter na escola, com avós e avôs que não puderam encontrar, com passeios que não puderam fazer, com encontros que lhes foram tirados e com a paciência e compreensão que delus foi exigida.
    A geração dos planos desfeitos vai nos ensinar muita coisa e se desprenderá dos valores que hoje conduzimos. Serão independentes de premissas que hoje nos parecem alicerces de nossa sobrevivência, mas no momento estão engasgades. Espremides por um mal que não enxergam e por uma sociedade que tampouco os vê. Governantes repensando a ordem das coisas para que o mundo que não é mais, ainda seja, do jeito que achavam que devia ser, e para que se mantenha funcionando uma economia que já não existe. Oprimides por irresponsabilidades de geração anterior a Geração dos Planos Desfeitos seguirá seu passo e, oxalá, um dia saibam desrespeitar a geração anterior culpando-a por seus planos desfeitos e transformando sua força em uma revolução de costumes, forma de agir e pensar.
 
                                                           
                                   - à minha filha e ao meu filho que, até quando encerrei estas palavras já haviam vivido entre os seus 09 e 13 anos na pandemia de COVID-19 –